(Os nomes dos personagens foram trocados, pois a intenção não é fazer juízo de valores, apenas contar uma triste passagem da história de Vitória da Conquista que demonstra a força e a luta de uma sertaneja que não se dobrou pela dor na busca daquilo que se acredita. A sua razão, o seu direito e sua verdade.)
No final do ano de 1895, no então distrito de Belo Campo,
Preste atenção como
começou essa história triste do lugar.
Na época, foi o maior
massacre já acontecido na Bahia.
Ficou na memória de todos
como “Tragédia do Tamanduá”.
Uma vaca inquieta, supostamente,
começou a contenda.
E, até hoje, as lembranças e
as marcas ainda pairam por lá.
O ano de 1895, decididamente, não foi um ano bom para o conquistense e em particular para a família Ferraz.
Vamos
nos situar em um fato inusitado, pela coragem e determinação movida pela dor, que
antecede à vingança que causou a chamada “Tragédia do Tamanduá”.
O
ano de 1895 mal começa e, em decorrências de fortes desavenças entre famílias, cujo motivo se refere, supostamente, a um animal dos
familiares de Florença, que teria passado pela cerca que separava as fazendas,
causando danos às plantações da roça de mantimentos do Cel. Rodrigo e culmina,
no dia 11 de janeiro, com as mortes de dois irmãos, que estavam acamados, por
Alonso. Este fato deságua no fatídico 20 de outubro de 1895.
Um
velho trabalhador da casa do Coronel Rodrigo, dá a notícia:
-
Ioiô, Ioiô... Zequié disse que uma vaca foi morta de morte matada lá no limite
do “Pau dispin”.
(A fazenda Pau de Espinho, que pertencia
a D. Florença, era vizinha da fazenda do Coronel Rodrigo)
-
Tá bom, depois manda alguém saber o que aconteceu.
Alonso,
genro do coronel Rodrigo, que não tinha um bom relacionamento com os vizinhos, ouve
e entra na conversa.
-
Rodrigo, meu sogro, deixa isso comigo. Eu mesmo vou resolver essa parada com os
vizinhos.
O
Coronel sabendo do sangue quente do genro, tenta relevar a situação.
-
Não precisa, Alonso. Deixe que meus camaradas resolvem isso.
Mas
Alonso não acata o conselho e ao encontrar os vizinhos, os dois irmãos filhos de
Florença, em um povoado, tomou satisfação.
- Deixa eu falar uma coisa pra Vocês! Vocês vão pagar caro pelo prejuízo causado na
roça de Rodrigo.
- Seu Alonso, o animal que entrou na
roça de Seu Rodrigo não é de nossa fazenda!
- Mentira, moleques safados.
Insatisfeito
com a resposta o genro do coronel entra em discussão com os dois rapazes.
E puxando um facão avança em direção dos
rapazes.
- Se preparem para apanhar.
Os
dois irmãos pegam os facões e começa uma briga de facão.
E
Alonso, genro do coronel, apanha e sai do povoado humilhado.
- Isso não vai ficar assim. Vocês não
perdem por esperar. Vocês vão ver com quem estão lidando.
Sabendo
que as coisas iam piorar, que Alonso não era de levar desaforo para casa, os
rapazes fogem para outra localidade chamada Tabocas (Itabuna) onde havia muita
umidade por conta das matas e chuvas constantes. Como não eram acostumados com
o clima da região, adoecem de febre amarela e voltam para casa.
O
genro do coronel, sabendo do retorno dos rapazes vai até a casa deles, na fazenda
e os encontram acamados pela febre.
O
genro do coronel, que havia assumido o cargo de representante da lei, aproveita
a oportunidade provoca uma discussão e acaba matando os dois irmãos.
D.
Florença, encontrando os filhos mortos, faz uma carga macabra. Põe os dois
filhos no lombo de um burro sai no fim da tarde tomando a direção de Conquista.
Caminha dia e noite em direção à cidade em busca de justiça.
São doze sofridas léguas de distância até a cidade de Conquista;
No
começo de 1895, aconteceu no “Pau de Espin”.
Deus
Dará... Deus Dará... Deus Dará...
Foi
a coisa mais grave que nesta terra já vi.
Uma
briga de família que teve um triste fim...
Deus
Dará... Deus Dará... Deus Dará...
E,
do Auto das doze léguas tiranas, a Cauã
Pede
vossa permissão e vai contar, assim...
Deus
Dará... Deus Dará... Deus Dará...
Os filhos de Florença
foram acusados, mas negaram.
Alonso, genro do coronel,
era valente e respeitado.
Quando ficou sabendo do
ocorrido, tomou as dores.
Certo dia viu Tércio e Justino
e partiu obstinado.
Discutiram e lutaram de
facão e Alonso saiu ferido.
Os irmãos fugiram para
Tabocas e o caso piorado.
Doentes, os irmãos
voltaram com o grave impaludismo.
Foram para fazenda e foram
tratados pela mãe Florença.
Alonso, agora no cargo de
subdelegado, foi fazer a prisão.
Encontrou-os acamados,
ainda sob o efeito da tal doença.
Em 11 de janeiro de 1895,
foram mortos com vários tiros.
Resistência à prisão,
justificou para o termo da desavença.
Entre a determinação e o sofrimento, uma tarefa a
cumprir.
Difícil imaginar o que se passou no âmago daquela
viagem:
Sair do Pau de Espinho em direção à sede do município,
Aproximadamente doze léguas percorridas com coragem.
Mistura de sentimentos: dor, revolta e senso de
justiça.
Há disputa de anjos e demônios em torno daquela
imagem.
A
Cauã é uma ave da caatinga,
E
é um bicho cantador.
Sua
lenda no sertão é antiga:
E
vem marcada com muito temor.
Se
cantar no galho verde é bonança,
Podes
dar graças ao Senhor!
Mas
se for num galho seco, é lambança.
Nem
é bom saber pra quem ela cantou.
Num galho seco canta a cauã
Cauã... cauã... cauã... cauã
Eu vi toda a batalha antes de acontecida
Eu gritei avisando com meu canto cauã,
Não me deram atenção e a sorte foi
vencida
Agora há quem chora e clama num lamento
vã.
Nesta peleja animalesca, sobra
inferno... falta céu...
Pela ilusão de querer ser dono do que é do
chão...
Da terra disputada, fica a dor com cara
de réu
Quem aprende com a vida, ouve a cauã na
anunciação.
FLORENÇA
Canta
de novo a cauã...
Canto
sem vida, sem graça...
Agourento
traz sorte vilã.
Deixando
a esperança na sarça.
Já
num basta o desespero
Das
ilusões mundanas...
Vou
deixar este terreiro
E
andar por 12 léguas tiranas.
Xô...
grito triste de tormento...
De
um triste viver amordaçado
A
me lembrar a cada momento,
Que meu coração tá
despedaçado.
- Meus fi foram mortos, mas que maldade das pior.
Sinto tanta dor que me dá escurecimento de vista.
Cadê ocê, meu Deus!? Que neste momento me faltou!?
Me deixou aqui sozinha nesta luta cruel e realista.
Me ajunta as forças pra fazer o que tem de ser feito.
Vou amarrar os dois na mula e rumar para Conquista.
Que disgrama de vida. Num tenho paz, num tenho
sossego,
O dia vai acabar. Vou arriar o animal e tocar pela
estrada.
Vamos mula careta... apresse o passo antes da noite
escurecer.
Cauã cantou no mato mas o pior já aconteceu. Mió ficar
calada...
Vamos por Deus Dará, Tamanduá, Sabiá, Mandacaru,
Batuque, Panela.
Os corpos dos meus fi tão no lombo do burro, vítima de
gente marvada.
O URUBU
Deixa que nós resolvemos estes retesos
Aliviamos
seu peso, fique só com a sua dor
Conhecemos
nessa nossa vida todos os desprezos
Somos
os lixeiros do sertão, ao seu dispor.
FLORENÇA
Quero ver se tem justiça neste mundo, vou levar pro intendente.
Oia... urubu inté de noite. Bicho danado, sentindo
cheiro da morte.
Meus filhos doentes, em cima da cama. Covarde... matou
à traição.
Tão perdendo tempo. Vão procurar comida em outro
norte.
Lua cheia quilariô. Que bom, meu Deus. Inda falta
metade do caminho.
Meu peito queima de raiva. Que sina miseráve é minha
sorte.
A
CASCAVEL
Chisxixixixixi – vai fazer seu destino, vingar seu futuro.
Mataram
seus filhos e te deixaram sem vida e sem rumo.
Seu
luto é eterno. Quero te lembrar com meu mau auguro,
A
vingança é a saída pra quem não gosta da vida sem prumo.
Vá
mesmo... tocando sua mula... sua raiva não é falsa...
Quando
dou o meu bote, é sem pena, sem medo, sem dó.
Se
descarrego veneno, vai junto da raiva a desgraça
Só não mexam comigo, não
sou amigo e por isso vivo só.
FLORENÇA
Cascavel... Bicho peçonha... agourento danado.
Isso
não é boa sorte... vá procurar seu igual...
Tem
homem que nem tu, pra todo lado.
Não
tenho futuro perfeito, tudo que vejo é sinal.
CORUJA
Nesse mundo o que vigora é a ilusão,
Nem sempre o que se vê é o que parece.
Na natureza o que vibra é a emoção,
Conhecer nosso interior é o que carece.
É triste a sina de quem planta violência,
Não sabe que a colheita é obrigatória.
Saber plantar a paz, harmonia e paciência
E esperar no tempo a colheita da vitória.
Descarrega este peso dobrado dos ombros
Que dobra o sentido da dor física e emocional.
Carregue só o essencial que suporte seus membros.
Na vida, o que pesa é o excesso de bagagem irracional.
FLORENÇA
É noite escura como minh’alma.
Escura... só
com estrelas a piscar.
As trevas da noite a esconder caminhos,
Ecoa meus lamentos que fico a chorar.
Me respondem os pios agourentos
Da mata assustada ao me ouvir gritar.
Tem um ribuliço danado em meu peito e em minha cabeça
Uma mistura de sentimento: sinto raiva, traição e
medo.
Um aperto no peito que me sufoca querendo vingança...
Tamanha covardia que faz do sentido da lei um
arremedo.
(MÚSICA GITA
– Raul Seixas)
Vamos sair desta sombra de tamboril, num temos o dia
todo.
Sombra boa pode viciar e num temos tempo pra
descansar.
Já dei água pra mula. Comi minha farinha com rapadura.
Vamos mula careta. Aperta o passo. Já passamos por
Iguá
E Campinhos. Conquista tá chegando é logo ali mais
adiante.
Vamos entrar no covil das cobras. Tô começando a
enxergar.
A CIGARRA
-Canto da cigarra – Vamos cantar para aliviar e espantar a raiva.
Pooo-
po- po- po - poo
Saio
da toca, fora de minha época no sertão,
Só
pra cantar pra vosmecê, minha menina.
Aliviar
um pouco mais a dor do seu coração
Com
esta sincera e singela prece pequenina.
Ave
Maria da Caatinga... a quem amamos.
Traz
a paz para esta terra... mãe de amor!
E
põe a paz no coração dos humanos, te rogamos.
Põe
a fé e alivia este coração da tristeza e da dor.
Peço
a Deus que tire o ódio do seu coração.
Sei
que é muito triste o sangue derramado.
O
tempo é senhor da vida e o caminho do perdão.
A vingança, tortura, é o
fel que vai ser multiplicado.
FLORENÇA
Cigarra neste mês?! Pronto. Estamos chegando mula careta.
Vou te descarregar na escada da igreja e percurar o
Intendente.
Ocê pode descansar desta carga macabra que carregou.
Aqui é o lugar de ocês, meus fi. Pra um descanso
decente.
Num tiveram sorte na vida. Que, na morte, Deus lhes dê
a paz.
Vou atrás de justiça. Mostrar minha raiva pra não
ficar demente.
Florença, exemplo de mulher disposta e corajosa.
Em meio à dor, promoveu uma cena de muita intensidade,
Fez dos cadáveres dos dois filhos uma carga macabra.
Colocou no lombo do burro e os levaram para a cidade.
Deixou na porta da igreja e procurou o dono da lei.
Antônio Ferreira e Melo a ouviu narrar toda a calamidade.
O sol ia alto e os
curiosos saíram das janelas e foram para a igreja ver a cena de perto. Os
corpos postos na escadaria.
O padre aparece e juntos,
como caridade, fizeram orações para a alma dos mortos, ainda com os corpos
presentes.
Florença deixa os corpos na igreja e sai à procura do representante da lei.
Os corpos dos meus filhos estão lá na rampa:
Agora
vosmecê enterra ou vosmecê come.
Venho
de doze léguas tiranas... ocê deixe de pompa
Não
tenho medo do poder, mesmo dum infame.
Não
sou demônio, nem santa, se fiquei foi louca.
Só
labuto nesta vida contra tudo e sem descanso,
Quero
que faça justiça, mesmo que seja pouca,
Pois
não tenho mais vida pra perder neste remanso.
Trazendo
na carga macabra, uma nova lida
Na
mente criei e carrego minhas peçonhas.
Nunca
pensei que inda nesta minha vida
Fosse
ter que jogar na cara suas vergonhas.
-“vocês mataram meus
filhos, eu trouxe os seus cadáveres.
Estão lá na igreja, se não
quiserem enterrá-los, comam”.
Disse ao então Intendente,
descarregando sua revolta.
Depois foi à Igreja e
ajoelhou na escada. E todos a olham.
-“À Justiça Divina entrego
o julgamento do caso das mortes
de
meus filhos, tão injustamente”. Os olhos se molham.
(Música: Morte e Vida Severina)
(Depois de enterrar os filhos ela retorna pelo mesmo caminho.)
Pronto
mula careta... cumprimos nossa missão.
Se
é que missão é viver e passar por essa tortura
Foi
entregue a encomenda das mais tristes do mundo.
Com
essa sina obscura, tô presa na pior clausura.
Perdida,
que nem barco sem vela... num abismo profundo.
A
cabeça roda, fervilha, a terra gira que me dá tontura.
A CORUJA
Nada mais será como antes.
Mais
sangue a sumir das veias.
A
morte no lombo de mercantes
E
a sorte a cair em suas teias.
No
mundo das ilusões,
Rastros
de ardis frementes
Perpetuam
os grilhões
Nas
embotadas mentes.
A
dor lancinante e reprimida
Por
essas incontidas emoções,
Vaga
em busca de comida
E
explodem que nem vulcões.
A
dor suportada te torna perigosa
Pois
te dá coragem para vencer
É
alimento que a torna vigorosa
E
mostra a todos que podes sobreviver
CASCAVEL
Sou irracional, sou temida por ser matança.
É
da minha natureza de peçonha ser assim.
Não
ataco por covardia, prazer ou por vingança
Reajo
e defendo quando causam dor em mim.
O
homem, na sua sombra, vive preso ao medo,
Usa
a inteligência... se sente vítima e ataca.
Age
com intenção e num ardil covarde tredo.
Por
um poder distorcido pelo ego, da arma saca.
Provoca
a guerra e a dor pela sua fútil vontade.
O
homem quer um inimigo e segue um plano faceiro.
Escolhe
um culpado e incute o medo e o ódio sem piedade.
Depois,
travestido de líder, aparece como justiceiro.
Busca
apoio justificando a necessidade da guerra
Como
única forma de salvação e de restabelecer a paz.
Ainda
se acha no direito de querer aplausos na terra
Medalhas
e honrarias se dizendo herói e salvador capaz.
CORUJA
O medo que se perpetua no homem
É
a separação entre a mente e o coração.
O
poder projetado em inimigos imaginários
Achando
que querem destruí-lo.
Pessoas,
instituições, países, fazem guerras
Movidas
pelo orgulho, poder, vaidade e medo.
O
caos é uma forma de aprendizado pela dor.
É
preciso reconhecer o caos e aprender a lição.
Mudar
a rota, mudar o caminho, voltar para dentro,
Eliminando
as formas doentias de levar a vida.
Enfraquecer
o medo alimentando a coragem
Para
derrubar muros e cercas e construir pontes.
Escolher
o compartilhar e não o combater.
É
preciso entender e cuidar das necessidades Básicas:
Alimentação,
segurança, liberdade, harmonia...
Para
alcançar a comunhão com a luz onde
Vigora
nossos anseios mais profundos de vida.
Despertar
o ser criativo para desenvolver
Os
verdadeiros dons e habilidades e deixar vir
O
ser sensível e perceptivo para entender a necessidade
De
aceitar e acolher todas as pessoas e os outros seres.
Apenas
respeitando e aprendendo com o que cada um
Tem
para ensinar, sem preocupar e se incomodar
Com
as diferenças. Entendendo que os desejos e necessidades
São
instrumentos recebidos, inerentes a cada um,
Por
ser seu caminho de aprendizado.
Há
necessidade em entender que todos temos o direito
De
estar aqui em benefício de si mesmo e do todo.
Evitemos
as guerras, com os outros e com nós mesmos,
Tratando
nossos medos, orgulho, prepotência, vaidade,
Necessidade
de poder e ilusões do ego.
Alimentando
e matando a sede dos famintos de atenção,
De
amor, de alimento do corpo e da alma e de compreensão.
Se
amando para amar e compreender os abandonados
Por
si e pelos outros, esclarecendo e dando rumos aos confusos.
Ao
observar e tratar a sua necessidade de controle,
Perceberão
que têm mais para agradecer do que para reclamar.
Curando
seu inconsciente para curar o inconsciente coletivo.
Curar,
curando-se. Somente assim podem cultivar a
Lucidez,
o Amor e a Verdade onde floresce a verdadeira vida.
O
sofrimento é prova de fogo que endurece a carne e fortalece a alma
Dias
sofridos, chorados, longas noites escuras onde tropeças e ergues
Mas
tu continuas andando em seu propósito. Daqui eu te saúdo pela
Coragem
de permanecer de pé, não posso enxugar tuas lágrimas nem
Aliviar
teus conflitos. Sairás mais forte, para desespero de teus inimigos.
CAUÃ
Cauã... cauã... é triste minha sina, meu penar,
Ouvindo a fala da peçonha eu tenho dó.
Vou continuar meu canto triste sem cansar,
Pois a época é difícil e uma desgraça
nunca vem só.
Cauã...
Cauã... Cauã...
2019
Adaptação:
Evento narrado no Livro Digital, “Conquista em Versos: A Saga de Uma Cidade e a
História que o Tempo Conta” por Fernando Odilon Lopes Santos
Revista
Histórica de Conquista de Aníbal Lopes Viana